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Nutrição: rumos e perspectivas para 2021
O ano em que vivemos em perigo: provavelmente, será assim que os historiadores do futuro descreverão 2020. Por ter sido particularmente difícil, foi também um período de aprendizado. Agora, chegou a vez da esperança!
Imagine que, no dia 31 de dezembro de 2019, algum ser do futuro viesse nos avisar que passaríamos meses e meses praticamente trancados em casa, que se saíssemos à rua seria só com máscaras protetoras, que bares e restaurantes ficariam fechados e que as escolas manteriam alunos estudando remotamente por mais de meio ano. Tal previsão certamente soaria como uma das tantas “profecias de Cassandra”, aquelas das quais todos duvidam, segundo a mitologia grega.
Mas foi o que aconteceu, infelizmente. A pandemia da Covid-19 pegou a todos de surpresa, deixando um rastro de perplexidade, perdas, sequelas e temor pelo futuro. A situação trouxe desafios inéditos para todos os setores, inclusive o de alimentação. E a necessidade de enfrentar esses desafios fez com que os profissionais tivessem que se adaptar e buscar soluções inovadoras. Entre as transformações vividas pelos Nutricionistas e Técnicos em Nutrição e Dietética, podem ser mencionadas desde a redefinição de atendimento, cada vez menos presencial, até o reconhecimento, por grande parte da sociedade, da importância do papel desses profissionais para a manutenção da imunidade, do bem-estar e da qualidade de vida da população.
Para dar um panorama das mudanças trazidas pela pandemia na área da tecnologia da alimentação – e que, aparentemente, vieram para ficar, conversamos com Carlos Piazza, escritor polímata, profissional de comunicação e consultor digital. Ele se define como um “darwinista digital”, profissional que estuda as adaptações que os seres humanos têm de fazer para acompanhar as transformações tecnológicas. Piazza ressalta que, ao contrário do que diz o senso comum, o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), pai da Teoria da Evolução, não disse que a sobrevivência pertence aos mais fortes: na verdade, sobrevivem aqueles que têm melhor capacidade de adaptação na natureza e na sociedade.
A nova realidade que veio
com a pandemia
Levando em conta os desafios trazidos pela pandemia, Piazza faz algumas projeções a partir do que se aprendeu no ano passado. “Pode-se dizer que 2020 foi o ano do desafio da transformação digital para todos os segmentos do mercado, o de alimentação especialmente, devido ao fato de a pandemia ter acelerado necessidades correntes e que já existiam na sociedade”, afirma. O surgimento das dark kitchens (restaurantes virtuais, apenas de entregas), que fez proliferar os pontos de especialização de distribuição de alimentos durante a pandemia, “é algo persistente e duradouro”, ele acredita, em detrimento de espaços e restaurantes com salões de atendimento.
“Isto se especializará mais e mais. O fato de os segmentos de negócios agora serem ‘fisital’, ou seja, físico e digital, promove um maior aprendizado do que funciona e do que não funciona; de quais cardápios são mais responsivos e quais não são; de que tipo de delivery é melhor. Dá maior foco a áreas prioritárias de distribuição, ou de inteligência geográfica”, explica Piazza. Por outro lado, o consultor acredita que a comunicação e o marketing digital também ganharam espaço, mas que foi necessário aprender muito sobre eles. “Sabemos que foi um desafio enorme aprender tanto em tão pouco tempo, mas os profissionais conseguiram e 2021 será o ano da maturidade e de novos estudos nestas áreas, incluindo netnografia (etnografia que analisa o comportamento humano em grupos sociais na internet) e inteligência geográfica. Será também o terreno das novas ideias, como o desenvolvimento de embalagens inovadoras; de novos sistemas de delivery, que consigam conservar melhor o estado dos alimentos, do ponto de vista de controle de qualidade e de aparência, bem como das condições de consumo, chegando montados, intactos, prontos”, prevê. O professor avalia que 2021 será o ano da consolidação das experiências e dos aprendizados, que serão permanentes.
Piazza acredita que a pandemia fez com que o futuro antecipasse em pelo menos uma década uma série de soluções que estavam no horizonte. “No mesmo campo das tecnologias exponenciais combinadas entre si e também na questão de novas propostas, houve um incremento muito grande no plano da comida impressa (feita a partir de impressoras de 3D). Cingapura foi o primeiro país a comercializar carne de frango produzido pela startup americana Eat Just, que usa um biorreator para acelerar o crescimento de células extraídas dos animais e criar a carne em laboratório”, ele explica. Mais que tendência, isso já é uma realidade, acredita o consultor, inclusive por outras experiências de pratos balanceados produzidos por impressoras 3D de alimentos, como chocolate, açúcar e proteínas, incluindo carne, frango peixe, pato etc.
Piazza ressalta que assistimos à chegada de hologramas tocáveis para averiguação de procedência, dados nutricionais, supermercados completamente digitalizados, usando massivamente inteligência artificial, sistemas cognitivos, realidade aumentada, realidade virtual, hologramas, realidade mista e muitas outras tecnologias que estão aparecendo pelo mundo a serviço da alimentação e dos sistemas de acesso a elas.
O professor também registra que em 2020 houve um avanço muito grande nas diversas formas de economia compartilhada e economia criativa. “Com o aparecimento de novas formas de consumo, da convocação para uso de insumos de pequenos produtores, muitas vezes encurtando caminhos logísticos, foi possível comprar, por meio de aplicativos, insumos diretamente de seus produtores”, ressalta.
“Por outro lado, apareceram as feiras nos condomínios oferecendo tudo que uma boa feira pode ter – e isso, muitas vezes, foi improvisado dentro de um ônibus; diversas iniciativas de entrega e aproximação de produtores e consumidores ocorreram e foram muito bem absorvidas. Outra ideia bem-sucedida foi a assinatura de insumos com distribuição semanal, garantindo economia aos pequenos produtores e consumidores de forma autônoma”, registra Piazza.
O fato de a pandemia ter forçado a criatividade nas novas formas de conexões entre bens e pessoas promoveu uma melhor distribuição, de forma mais inovadora e saudável, com menor peso e custo logístico em uma nova economia de baixo contato, em que, ainda de acordo com Piazza, “as aproximações entre esses atores encontraram respaldo na alta densidade de tecnologia, que lhes deu substrato”.
O especialista está convencido de que o mundo da pandemia estabeleceu, em escala global, essa nova economia de baixo contato. Desde sempre, consumidores, produtores e distribuidores foram treinados para uma economia de alto contato. “Porém, 2020 foi o ano em que as empresas fizeram em quatro dias o que não fizeram em dez anos; o ano da transformação digital forçada como único meio de sobrevivência disponível”, afirma.
Para Piazza, como reflexo direto da necessidade de se ter um sistema de informações legítimo, cresceu muito o ambiente ético no ambientedigital. “Em um mundo com infodemia (excesso de informações, nem sempre verdadeiras), é necessário que haja um esforço muito grande, principalmente quando temos vidas em jogo. De qualquer forma, é alentador observar a relevância da ciência e do jornalismo profissional e também de todos os sistemas multistakeholders que estão interligados nesta visão de sociedade”, conclui o consultor.
Novas tendência para 2021
“O principal desafio que tivemos em 2020 foi o de nos reinventarmos”, resume a Nutricionista Aline Fonseca, que tem 30 anos de experiência na administração de empreendimentos gastronômicos. “O Nutricionista teve que sair do lugar ao qual estava acomodado porque sabia dos problemas e das condições, e precisou se reinventar”, analisa. Aline ressalta que o trabalho de boa parte dos Nutricionistas e Técnicos em Nutrição e Dietética voltou-se principalmente para uma parcela bastante prejudicadapelas restrições à livre circulação: os segmentos de restaurantes, alimentos e bebidas. De acordo com ela, foi necessário saber lidar até com o lado psicológico desses clientes, que se viram fragilizados frente à pandemia.
Ao mesmo tempo, foi necessário aperfeiçoar protocolos e colocá-los dentro das cozinhas. A máscara, por exemplo, representou um grande desafio: “as pessoas trabalham nas cozinhas que, muitas vezes, são quentes e fechadas, e agora precisam usar máscara”, observa Aline. “Inegavelmente, esse foi o maior desafio como protocolo.”
Para 2021, Aline considera que as prioridades devam ser buscar capacitação e conhecer novas formas de atendimento. “Será um novo mundo, sim, inclusive porque as pessoas se acostumaram a comer em casa. Então, o delivery provavelmente vai continuar, mas em um formato mais coerente”, acredita. Aline imagina a adoção crescente do serviço próprio de entregas, com transporte personalizado e em condições que proporcionem ao cliente uma experiência sensorial de alta qualidade. “Ou seja, o mesmo alimento que ele comia no restaurante, será consumida em casa. Portanto, esse restaurante precisa ter uma técnica dietética que permita isso, e tanto o Nutricionista quanto o Técnico em Nutrição e Dietética terão que entender de sustentabilidade, porque estamos falando de um aumento no uso de embalagens e precisamos nos preocupar com isso”.
A Nutricionista também acredita que haverá um crescimento do take away, quando as pessoas ligam, fazem a encomenda e vão buscar o produto no estabelecimento, e do grab and go, em que os alimentos são dispostos em refrigeradores ou freezers e o consumidor escolhe o que desejar.
“Teremos, ainda, que entender como trabalhar nas dark kitchens. Novas tendências impõem novas necessidades, o que certamente fortalece os Nutricionistas e os Técnicos em Nutrição e Dietética”, analisa Aline. “Os 3S da alimentação serão Saúde, Segurança e Solidariedade. É nisso que temos que pensar: em questões de higiene e manipulação dentro do restaurante, em cardápios mais saudáveis e na saúde dos colaboradores”, declara.
A questão da segurança, tanto de saúde quanto financeira, estará em alta, assim como a solidariedade, que precisa ser preservada. “Devemos nos perguntar: como essa mão de obra está vindo trabalhar? Como ela está em casa? Está segura? Isso é solidariedade”, exemplifica. “Depois, vem a solidariedade com o nosso cliente. Estamos sendo reais, transparentes? A comida que estou servindo está saudável? O preço que estou cobrando é justo? Depois vem a solidariedade com o meu bairro, com o meu local de trabalho, fortalecendo o relacionamento com os fornecedores da minha região, que também foram impactados e precisam desse apoio. A comunicação também será muito forte em 2021”, prevê.
Continuidade do aprendizado
“O ano de 2021 apresenta-se como um ano de adaptação e implementação de práticas já adotadas pelos profissionais da área de alimentação escolar”, afirma Rosana Nogueira, Nutricionista e conselheira do CRN-3. Para ela, pelo que estamos assistindo no cenário nacional, ainda teremos um período de adaptação nas escolas em relação à alimentação. “Na forma de preparo dos alimentos, na higienização das áreas, equipamentos e utensílios, higiene dos manipuladores e dos alimentos, e ainda o local e a maneira que os alimentos serão servidos, e como os alunos vão se relacionar no momento da refeição”, elenca.
Rosana acredita que os Nutricionistas e Técnicos em Nutrição e Dietética precisarão estar atentos às novas regulamentações do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e dos órgãos oficiais de saúde. E os gestores municipais devem observar a necessidade de recomposição ou adequação dos quadros de profissionais. “A alimentação escolar, assim como as diversas áreas de atuação do Nutricionista e do Técnico em Nutrição e Dietética, passou por inúmeras adequações em 2020 em razão da pandemia. Muitas alterações na operacionalização do PNAE foram necessárias para atender ao seu objetivo principal – fornecer alimentação saudável e adequada aos alunos durante o período de aula”, ela analisa.
A Nutricionista lembra que, como não houve aula durante praticamente todo o ano passado, cada município, mesmo tendo legislação específica para o assunto, passou a fazer a oferta de refeições à sua maneira, com cestas básicas, kits alimentação, refeições prontas etc. “Neste contexto, o Nutricionista precisou lançar mão de todo seu arcabouço técnico e ainda de muita criatividade para poder atender aos alunos das escolas públicas da rede básica de ensino”, explica Rosana.
“Considerando as experiências de 2020, com os estudantes em casa, com mudança na rotina, inclusive a mudança nos hábitos alimentares, eu acredito que no cenário da alimentação escolar da rede privada possam ser às escolas particulares projetos de educação alimentar e nutricional que visem estabelecer um canal de comunicação com o Nutricionista e com o Técnico em Nutrição e Dietética”, diz Legiane Rigamonti, representante externa do CRN-3. Para ela, fortaleceu-se a possibilidade de um ensino híbrido, que conta com atividades remotas e presenciais nas quais poderão ser trabalhadas temáticas em parceria entre estudantes e professores, envolvendo inclusive a família. “Eu também percebo que a pandemia deixou bem clara a necessidade do trabalho do Nutricionista e do Técnico em Nutrição e Dietética no acompanhamento do fornecimento de alimentação em relação às boas práticas de manipulação. Acho, sim, que o Nutricionista e o Técnico em Nutrição e Dietética podem atuar fazendo parte da busca pelas soluções, trazendo um olhar positivo, com amor pela profissão, pelas suas atividades e, principalmente, pelo público atendido”, ela acrescenta.
Para a Nutricionista Irene Coutinho, conselheira do CRN-3, a crise econômica e as incertezas frente ao futuro impactaram os estudantes e suas escolhas, inclusive no que se refere às possíveis opções pelos cursos de graduação em Nutrição ou Técnico em Nutrição e Dietética. “As instituições de ensino privadas encaram o desafio de manter o seu alunado, uma vez que houve uma grande evasão escolar desde o início da pandemia, além do desafio de atrair novos alunos em um cenário tão competitivo”, afirma. Para Irene, há uma grande concorrência entre as instituições de ensino para a captação de alunos depois do afloramento de muitos cursos na modalidade EaD. “As instituições precisam manter sua estrutura física (bibliotecas, laboratórios, salas de aula), corpo docente, corpo técnico-administrativo e, agora, mais do que nunca, disponibilizar acesso a muitos recursos tecnológicos para favorecer a interação e a aprendizagem significativa tão importantes para a formação profissonal”, ela ressalta.
“As instituições de ensino deverão atualizar seus projetos pedagógicos de modo a permitir que a formação de Nutricionistas e Técnicos em Nutrição e Dietética contemple experiências educacionais significativas, tanto em atividades presenciais quanto não presenciais, que favoreçam a formação de um profissional tecnicamente competente, eticamente comprometido e que tenha competências socioemocionaisbem desenvolvidas para atuar no mundo do trabalho”, pontua Irene.
Essas instituições devem “apresentar propostas pedagógicas, recursos educacionais, estrutura e corpo docente de modo a tornar o profissional protagonista de sua formação, que saiba analisar criticamente a enxurrada de informações que surgem a cada dia e fazer escolhas pautadas nas evidências científicas; que saiba agir de forma resolutiva, com ética e respeito a todas as diversidades, sempre em defesa da vida e da garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos”, conclui.
Papel dos Técnicos em
Nutrição e Dietética
Maria de Lourdes Santos Souza, presidente do Sindicato dos Técnicos em Nutrição e Dietética de São Paulo, também enxerga o mercado próspero para os Técnicos em Nutrição e Dietética, mas faz uma recomendação com relação à capacitação profissional: “a categoria deve continuar a busca pelo aperfeiçoamento, pois o mercado, embora em expansão, sobretudo na área de Nutrição em alimentação coletiva, está cada vez mais competitivo e se destacam os profissionais mais capacitados e antenados”, afirma.
De acordo com Talissa Vieira, Nutricionista e vice-presidente da APAN e professora de curso técnico em Nutrição e Dietética, a alta demanda do mercado de alimentação fora do lar trouxe novas oportunidades para os Técnicos em Nutrição e Dietética. “Nesse período da pandemia de Covid-19, os profissionais de empresas que ofertam o serviço delivery, por exemplo, precisam de orientações para se adequarem às novas legislações, e é aí que os Técnicos em Nutrição e Dietética entram – eles já conhecem muito bem a legislação e a aplicação prática de todos os procedimentos necessários”. Para Talissa, é importante que os Técnicos em Nutrição e Dietética continuem buscando conhecimentos. “Uma das tendências apontadas por especialistas é o empreendedorismo – o momento está propício empreender e para novos negócios. Por isso recomenda-se conhecer áreas correlatas que possam contribuir ainda mais para ampliar horizontes e a prática do TND”, ela assinala. “Cursos de gestão e novas tecnologias, por exemplo, podem ser uma maneira mais assertiva e segura para alcançar o sucesso nos negócios”, conclui.
Nutrição esportiva
Bruna Muñoz Vargas, que tem especialização em Nutrição Esportiva, relata que na área de consultoria esportiva, em academias, houve uma grande mudança no aspecto do atendimento nutricional. “Muitos aumentaram de peso pela falta de atividade física regular, porque as academias fecharam por alguns meses. Alguns alunos tiveram perda de massa muscular. Desequilíbrios dietéticos ocorreram também, como bulimia e anorexia, assim como transtornos alimentares pela sensibilização emocional devido à pandemia. Nessa situação, os prontuários dos pacientes precisaram de adequação e investigação a respeito desses aspectos emocionais envolvidos”, registra. “O aspecto emocional influencia de forma direta nossos hábitos alimentares; então, nosso desafio é descobrir como está o aspecto emocional dos alunos”, afirma.
Para Bruna, 2021 aponta para uma perspectiva de ampliação do papel de Nutricionistas e Técnicos em Nutrição e Dietética, justamente porque muitas pessoas que antes almoçavam fora agora estão preparando suas comidas em casa. E, com isso, passaram a pensar mais na qualidade da alimentação, não apenas para si próprio, mas para toda a família. “O Nutricionista e o Técnico em Nutrição e Dietética que souber aproveitar essas oportunidades surgidas na pandemia tem grandes perspectivas”, ela acredita. “Além disso, nesse período nós aprendemos a usar ferramentas que antes não usávamos, como as consultas online. E isso nos possibilitou divulgar muito mais nosso trabalho na área da Nutrição Esportiva, bem como melhorar a disposição dos alimentos para a coletividade”, finaliza.